quinta-feira, 27 de novembro de 2014

19/10/2014 - Prata

A noite procura satisfazer os mais ávidos entusiastas (e os mais pobres habituados) com a possibilidade de uma escolha fundamental: ser debaixo de lâmpadas um deambular de pernas curiosas pelas ruas da cidade ou sucumbir ao aconchego do bar-taberna que as pernas curiosas decidiram pisar. Podem os mais sábios dizer que a noite nunca oferece seja o que for e que qualquer escolha, por mais superficial que seja, é o fruto de uma ilusão pueril destinada a ocultar a mais simples das suas verdades, a que todas as suas ruas vão dar a um bar (pelo simples facto de serem os únicos estabelecimentos abertos a esta hora). Com a arrogância que a experiência nos concede, diremos que o bar tem a porta aberta pois ele é um prolongamento da sua própria rua. A origem do bar deve ser desconhecida, a sua idade uma incógnita, e se por algum motivo surgir a necessidade de o datar a sua fundação deverá permanecer na incerteza. De facto, o bar é do seu dono, mas esta afirmação deverá sempre ser posta em causa ao mínimo indício de negligência ou de mau gosto. O resto do bar, as garrafas as mesas e a música de fundo ou de primeira ordem, por vezes o cheiro de um tabaco colectivo à luz de um néon apagado, o resto do bar é o barulho de coisas que durante o dia esperam fechadas e que de madrugada nos empurram para a rua de onde viemos. À luz desta ideia é impossível negar que o bar desta noite merece esta designação. Se foi com Carmen que nos despedimos (numa tentativa falhada de expulsão à horas de portas fechadas) foi com ginja que fomos recebidos, com a experiência, mais uma vez comprovada, de um serviço extremamente generoso. E com noites de outono disfarçadas de verão, o pátio exterior debaixo da borracheira oferece num mesmo andamento a leveza de uma esplanada e o recolhimento necessário (nas noites mais calmas) para uma degustação-conversa simples e demorada. De frequentação eclética (mas não tanto como se poderia pensar), diríamos que ao combinar a ideia do lounge contemporâneo (o sofá no hall de entrada) com a melancolia da taberna rústica (os grandes azulejos quadrados cor de terra e três grandes mesas com bancos de madeira enquanto que do outro lado do bar um dono distraído e talvez até um pouco aborrecido pela simplicidade do nascer de uma perpétua imperial algures entre o acumular dos objectos de um passado um pouco mais glorioso) nesta mistura familiar de noite e poeira encontramos uma atmosfera despojada de infantilismos e da sua necessidade absoluta para aproveitar o tempo em busca de um presente irremediavelmente perdido. Se por algum infeliz acaso no encontrarmos sós no requinte de tal espaço, puxaremos um dos bancos altos e deixaremos que a pessoa do outro lado do balcão meta conversa, nem que seja para saber o que deve servir. Quando o Inverno chegar e quando a porta do pátio estiver fechada para guardarmos o calor perto dos bancos de madeira, lá fora a borracheira estará debaixo de uma chuva miudinha adivinhada pelo amarelo industrial da iluminação pública enquanto que abrigados teremos ganho mais uma desculpa para obrigarmos Carmen a apressar o fim da noite.